O Poder Do Destino. Capítulo 27.
Windenburg. Terça-feira.
Era uma tentativa delicada de alegrar a irmã, Amanda, que ainda carregava nos olhos o peso dos acontecimentos de domingo. Ela sofria em silêncio pela ausência de Hugo, disfarçando a tristeza para não preocupar a família — mas, ironicamente, seu esforço apenas tornava sua dor ainda mais visível. Estava distante, alheia às conversas, como uma sombra de si mesma.
— Ela tá tão tristinha... — lamentou Sarah, com a voz embargada.
— Vai passar — respondeu Pedro, tentando consolar a esposa e a si mesmo. — Só precisamos ter paciência.
— Se ao menos ela se alimentasse! — insistiu Sarah, num sussurro aflito. — Mal faz uma refeição por dia... Não come, não dorme direito!
— Ela vai ficar bem, Sarah. Amanda tem a gente... e a gente ama muito ela.
— Mas o amor que ela precisa... não é o nosso. — A voz de Sarah morreu no ar, como um lamento que nem o tempo ousaria desfazer.
Na mesma cafeteria, poucos metros adiante, Vivian e Otacílio já se levantavam para pagar a conta..
— Vou esperar lá fora. Preciso respirar um pouco. — disse Otacílio, levando a mão à testa.
— Tá bom, querido. Mas cuidado... sua pressão ainda tá baixa — alertou Vivian.
Otacílio não havia dormido bem e sentia o corpo frágil, como se cada passo exigisse um esforço dobrado. Ao sair, seus olhos se detiveram numa cena singela: uma jovem mãe brincando com uma criança. Sem perceber, ficou ali, parado, observando.
Sarah, ao notar o senhor bem-vestido a olhá-la, resolveu quebrar o gelo:
— Bom dia! Tudo bem?
Otacílio despertou do transe, um tanto constrangido.
— Bom dia! — respondeu, ajeitando a postura. — Me desculpe, não quero incomodar!
— Imagina! O senhor não incomoda. — Sarah sorriu, gentil como a brisa daquela manhã. — Eu sou Sarah, e esta é minha filha, Sofia.
— Muito prazer! — disse ele, inclinando-se levemente. — Me chamo Otacílio Brandão. Sua filha é... linda. E também... bem incomum. — apressou-se em acrescentar, receoso de soar rude.
— Tudo bem, eu sei que a Sofia chama atenção. — Sarah riu baixinho. — Tem a pele morena, os olhos verdes e o cabelinho vermelho que herdou de mim.
Otacílio hesitou. Seus olhos correram discretamente pelas mesas ao redor.
— A pele morena... — murmurou, como se algo se desenhasse em sua mente. — Deve ter herdado do pai, não?
— Sim. — Sarah apontou discretamente para Pedro. — Aquele homem ali é meu marido. O nome dele é Pedro.
Otacílio engoliu em seco.
— Pedro?... Pedro Barros?
— Ele mesmo. O senhor conhece?
Pedro, que já ouvia a conversa de longe, virou-se com um estremecimento na espinha. Sua voz saiu firme, quase cortante:
— Como vai, Álvaro Barros?
Otacílio ficou petrificado. Por um instante, o tempo pareceu congelar entre eles.
— Pedro... — murmurou ele, reconhecendo a sombra de um passado que pensava ter enterrado.
Sarah olhou confusa entre os dois homens.
— Amor, você tá confundindo... O nome dele é Otacílio Brandão!
— Não, Sarah — disse Pedro, com os olhos presos no homem diante dele. — Ele é Álvaro Barros. Meu pai.
Sarah arregalou os olhos, incapaz de esconder o choque.
Otacílio deu um passo à frente, com a voz trêmula:
— Pedro, meu filho! Há quanto tempo... Essa é sua família? Onde está Amanda?
Pedro endureceu o semblante.
— Doze anos, Álvaro. Doze anos desde que você foi embora e nunca mais olhou pra trás. Mas eu vejo você nas notícias... Você se tornou um dos empresários mais bem-sucedidos de Windenburg.
— Você sabia que eu morava aqui? Então por que nunca me procurou? — Otacílio perguntou, a esperança tremulando em sua voz.
Pedro sorriu amargamente.
— Você deixou de ser meu pai quando escolheu outra mulher... e o dinheiro. Até mudou de nome pra apagar o que deixou pra trás. Me diz, Álvaro: por que eu iria te procurar?
— Eu errei muito... — sussurrou Otacílio, com a culpa pesando sobre os ombros. — Mas tive meus motivos...
Pedro levantou a mão, cortando qualquer explicação.
— Não me importa. — Sua voz era uma lâmina fria. — Viva a sua vida. E deixa a nossa em paz.
Sarah ficou surpresa com a revelação.
— Pedro... esse senhor é o seu pai?
— É sim! Ou pelo menos já foi, um dia.
— Pedro, meu filho, vamos conversar? — pediu Otacílio, com a voz embargada.
A movimentação chamou a atenção de Amanda e seus amigos.
— Quem é aquele senhor? Por que o Pedro parece tão irritado? — perguntou Amanda, desconfiada.
— Pois é, tô achando estranho também... Mas não deve ser nada — comentou Luísa, observando de longe.
— Talvez seja um cliente? — sugeriu Tae.
— Se for cliente, tá devendo pro Pedro, porque ele tá com uma cara de poucos amigos! Eu vou lá ver o que é!
— Amanda, vamos esperar aqui. Esse "cliente" é do Pedro! — tentou dissuadi-la Luísa, preocupada em poupar a amiga de mais aborrecimentos.
Mas Amanda já estava decidida. Seguiu até o irmão.
— Pedro, o que tá acontecendo?
Quando seus olhos cruzaram com o do homem idoso, Amanda sentiu um frio na barriga. Bastaram alguns segundos para reconhecê-lo.
— Pai?
— Filha?!... Como você está linda! Se tornou uma bela mulher.
— Eu não acredito... É você mesmo?
— Sim, sou eu, Amanda. O seu pai!
Vivian, que acabava de pagar a conta, aproximou-se curiosa da confusão.
"Mas quem são essas pessoas malvestidas? O que querem com o velho?" — pensou, com desprezo.
— Otacílio? O que está acontecendo aqui? Quem são essas pessoas?
Amanda estranhou o nome que a mulher usou.
— "Otacílio"? O seu nome é Álvaro Barros, não Otacílio! Quem é essa mulher?
— Quem sou eu? Você não vai responder, Otacílio?! — insistiu Vivian, a voz cortante.
— Vivian, não é um bom momento! — murmurou Otacílio, tentando a todo custo evitar um escândalo.
— Essas pessoas estão pedindo alguma coisa para você? Emprego, dinheiro...? O que é desta vez? — disparou Vivian, com arrogância.
— Vivian, por favor! — implorou Otacílio.
— E por que a gente pediria alguma coisa pra ele? Quem é você, hein? — retrucou Amanda, indignada.
— Sou a noiva de Otacílio Brandão. Vivian Gutierre! — anunciou, como quem ostenta um troféu.
— Noiva? — Amanda ergueu a sobrancelha. — Você tem idade pra ser filha dele!
— Ela não é tão jovem quanto parece! — apressou-se Otacílio. — Podemos conversar com calma, por favor?
— Por que isso não me surpreende? Esse comportamento é típico seu! — Pedro avançou, o passado queimando na voz. — Nunca foi fiel a ninguém, não é?
— Se está pensando que traí minhas ex-esposas, está enganado! — retrucou Otacílio, a face vermelha.
— Enganado?! Você enganou a nossa mãe! Abandonou a gente! — Amanda, com lágrimas nos olhos, não segurou a revolta. — Ela morreu te amando... e você nunca olhou pra trás!
— Amanda, minha filha, vamos nos acalmar... — tentou Otacílio, suplicante. — Podemos conversar em outro lugar?
— Já falei tudo! Você não é mais meu pai! Deixou de ser quando virou as costas pra gente. Vá viver sua vida de rico com essa perua!
— Muito bem, você ouviu a desajeitada. Vamos embora viver a nossa vida, Otacílio! — Vivian disparou, olhando Amanda de cima a baixo, como quem pisa numa flor caída.
Pedro, atento, franziu a testa ao ouvir o nome dela.
— Seu nome é Vivian?... Você não é daqui, é?
— É lógico que não! — Vivian respondeu, inflando-se de orgulho. — E antes que pense que estou me aproveitando do meu noivo, saiba que tenho minha própria riqueza! Estamos juntos por amor! E isso não é da sua conta!
— Por amor? Difícil de acreditar... — murmurou Pedro. — Mas você tem razão. Sua vida não nos interessa!
— Exatamente! — completou Amanda, cortando a conversa como uma lâmina. — Sigam com suas vidas... bem longe da nossa.
Sarah, sempre com o coração aberto, interveio:
— Olha, acho que vocês poderiam conversar melhor. Não faço parte dessa família há tanto tempo, mas amo todos vocês. E agora temos a Sofia... Será que ela não merece conhecer o avô?
Amanda, com os olhos faiscando mágoa, protestou:
— Sarah, ele nunca quis saber de nós! Nunca procurou a gente! Você acha mesmo que agora vai se importar com a Sofia?
Sarah lançou um olhar de esperança para os amigos de Amanda:
— Luísa, Tae... O que vocês acham?
Tae, com sua calma de sempre, respondeu:
— Acho que a conversa é o melhor caminho para um entendimento.
— Mesmo que ele não mereça, concordo com o Tae — acrescentou Luísa. — Vocês deveriam conversar com calma, depois decidam o que fazer.
Amanda respirou fundo, como quem engole pedras:
— Tudo bem... Vamos ouvir o conselho da minha cunhada e dos meus amigos. Vamos conversar para resolver essa situação. Mas tenha certeza de uma coisa: nunca vou perdoar você pelo sofrimento que causou à minha mãe!
Pedro assentiu, com a mandíbula cerrada:
— Nem eu vou perdoar! Mas entraremos em contato quando decidirmos o dia dessa conversa.
Otacílio, surpreso pela pequena fresta de esperança, murmurou:
— Então você também sabia como me encontrar... Deveria ter me procurado, meu filho.
Pedro, firme como um rochedo castigado pelas marés, respondeu:
— Se você quis sumir, deixei que sumisse.
Otacílio baixou os olhos:
— Eu não espero o perdão de vocês... Só desejo a chance de explicar o que aconteceu. Vou aguardar o contato.
Vivian, ao lado, assistia tudo com o coração tomado por veneno.
"Velho desgraçado! Me enganou! E agora? Não vou dividir meu dinheiro com esses mortos de fome! Se for preciso, mato um por um..." — pensava ela, com os olhos faiscando ódio.
— Jonas, traga o carro. Eu não estou me sentindo bem.
— Senhor Otacílio, o que aconteceu? Vamos para o hospital!
— Só preciso tomar meu remédio... — balbuciou ele, desequilibrando-se.
Jonas o amparou às pressas.
— Dona Vivian, precisamos levar ele pro hospital! — exclamou, alarmado.
Mas Vivian, fria como mármore, respondeu:
— Não se preocupe. Foi só uma queda de pressão por causa das emoções. Vamos pra casa. No caminho, eu ligo para o médico dele.
— Mas, dona Vivian, ele tá muito pálido!
— Senta ele naquele banco e vai buscar o carro, Jonas! Eu sei o que é melhor pra ele!
Horas depois.
Na casa dos Barros, a paz ainda era frágil. Amanda se despedia dos amigos na porta:
— Então te vejo amanhã pra gente almoçar juntas?
— Claro, Luísa! A gente se vê amanhã!
— Mas, se precisar conversar, me liga, tá? — disse Luísa, segurando a mão da amiga com carinho.
— Tá bom... Eu ligo, sim.
Amanda sorriu, mas era um sorriso triste, como o último raio de sol antes da noite cair.
Dentro de casa, o silêncio pesava como um véu de chumbo. Amanda e Pedro se encararam, o passado pairando entre eles.
— Pedro, você sabia onde nosso pai estava? Desde quando? — Amanda perguntou, a voz tensa.
Pedro desviou o olhar, como quem carrega uma culpa antiga.
— Desde o enterro da mamãe.
Amanda arregalou os olhos, sentindo o chão fugir sob seus pés.
— Como assim?
Pedro se lembrou — uma memória amarga como fel.
Naquele dia sombrio, ele viu Álvaro, o pai deles, escondido entre as sombras, assistindo de longe ao enterro da mulher que um dia jurara amar. No início, Pedro duvidou de seus próprios olhos. Quando criou coragem para se aproximar, Álvaro fugiu, como um ladrão de memórias.
— Meu Deus... Eu não acredito! — Amanda murmurou, com a voz embargada. — Por que você nunca me contou?
— Não ia adiantar. Você já estava sofrendo demais — Pedro respondeu, com o peso da culpa nas palavras. — E eu nem tinha certeza se era ele.
— Mesmo assim, eu tinha o direito de saber! — Amanda rebateu, ferida.
Pedro manteve a calma, como quem apanha sem revidar:
— Amanda, ele não queria se aproximar de nós. Tanto que fugiu quando tentei falar com ele.
— Se não queria, por que agora? E como você tinha o contato dele? Você nem ficou surpreso quando viu ele todo engravatado daquele jeito!
Sarah, tentando soprar um pouco de esperança naquela tempestade, opinou:
— Talvez porque ele se arrependeu?
Amanda soltou uma risada amarga.
— Arrependido? Um homem arrependido que nunca procurou os filhos que abandonou? Eu nunca vou perdoar o que ele fez com a mamãe... Nunca!
Pedro respirou fundo, como quem prepara a alma para sangrar:
— Dois anos depois da morte da mamãe, eu vi ele de novo. Durante uma pesquisa de trabalho, topei com o nome "Otacílio Brandão" numa rede social. Era ele... Um dos empresários mais ricos de Windenburg.
Amanda piscou, atordoada:
— Mais rico? Então por isso ele estava tão bem vestido... Mas como?
Pedro explicou, a voz amarga:
— Casou-se com uma milionária idosa. Depois que ela morreu, herdou tudo. Foi assim que virou rico.
O silêncio de Amanda foi como um tapa.
— Então ele abandonou nossa mãe por dinheiro...
Pedro se aproximou, cuidadoso como quem se aproxima de um ninho ferido:
— Se você não quiser, não precisamos conversar com ele. Não quero que sofra ainda mais.
Mas Sarah, determinada, voltou a intervir:
— Vou me meter de novo... Vocês precisam conversar com ele. Nem que seja só para esclarecer essas dúvidas. Perdoar ou não será uma decisão só de vocês.
Amanda fitou Sarah com desconfiança:
— Você também sabia dele?
— Não, ela não sabia! — Pedro respondeu rápido, como quem defende uma fronteira preciosa. — Eu escondi isso até dela.
Amanda soltou um suspiro cansado, a alma pesada.
— Já deu por hoje. Vou pro meu quarto trabalhar. Não precisam me chamar pro almoço. Desço quando quiser comer alguma coisa.
Depois que Amanda subiu, a casa ficou tomada por um silêncio espesso.
Sarah cruzou os braços e encarou Pedro, o olhar firme como uma âncora.
— Então você me escondeu isso?
Pedro abaixou os olhos, como um menino apanhado em travessura.
— Me desculpe, Sarah...
— Só isso? Só um "me desculpe, Sarah"? — ela insistiu, a voz embargada. — Não vai me explicar o porquê?
Pedro suspirou, carregando o mundo nos ombros.
— Eu queria não ter visto ele... Queria não saber. Fiquei com raiva. Descobrir que meu pai era rico, vivendo como um rei, enquanto a gente sofria... com dívidas, com a morte da mamãe... — ele balançou a cabeça, tentando afastar o gosto amargo. — Você está brava comigo?
Sarah se aproximou, a voz ferida, mas cheia de amor:
— Pedro, você sabe tudo sobre mim. Me conhece até nos meus dias mais feios... Sabe dos meus pais, da minha família louca, dos meus medos mais bobos. Sempre me ouviu com uma paciência que nem sei de onde vem. — Ela engoliu em seco. — Estou brava porque você não dividiu isso comigo. Somos marido e mulher. Não é só a cama que temos que dividir, é a vida.
Pedro fechou os olhos, o coração apertado.
— Eu queria que ele nunca tivesse aparecido... Mas sabia que, um dia, isso poderia acontecer.
Sarah afagou o rosto dele, como quem afaga uma alma em ferida aberta.
— Não guarde tanta mágoa, Pedro. Essa conversa pode esclarecer muitas coisas. Seja grato por esse reencontro, mesmo que doa.
Pedro soltou uma risada seca, que mais parecia um soluço:
— Grato? — Ele sorriu sem humor. — Esse homem nunca terá a minha gratidão.
Sarah ignorou o sarcasmo e o abraçou, apertando-o contra si como quem segura um vaso rachado.
— Pedro, não fique assim, meu amor... Eu te amo. E vou cuidar de você pelo resto da vida.
Pedro a envolveu nos braços, forte como uma promessa antiga:
— Quem deve cuidar de você sou eu! Nunca vou te abandonar, Sarah. Serei sempre o melhor marido e o melhor pai, pra você e pra nossa filha. E também... prometo ser um irmão melhor pra Amanda.
Sarah sorriu com ternura, seus olhos brilhando como manhã depois da tempestade.
— Você já é o melhor. O homem mais lindo e bondoso que conheço. Eu te amo, Pedro. Mas, por favor... não esconda nada de mim. Principalmente algo que te machuca assim.
— Não vou mais esconder. Me perdoa, amor?
— Promete?
— Prometo!
Sarah sorriu e se inclinou para beijá-lo na testa.
— Então, eu te desculpo. Agora vamos subir. Quero descansar um pouco.
Pedro segurou a mão dela, como quem segura um pedaço do próprio coração.
— Vamos. E depois que a Sofia dormir, vou te fazer uma massagem.
Sarah ergueu uma sobrancelha, maliciosa:
— Você não estava triste e cansado?
Pedro riu e beijou sua testa:
— Sarah... você é meu sol. Ilumina qualquer escuridão. Eu te amo mais do que a vida, mulher!
Sarah deu uma risadinha:
— Hmm... então vou aceitar essa massagem!
A noite desceu sobre a casa, trazendo tranquilidade para alguns... e mais sofrimento para outros.
Quando a noite chegou, faminta e cansada, desceu para uma refeição rápida.
Pedro e Sarah estavam no quarto, cuidando de Sofia.
Depois, sem pensar muito, seus passos a levaram até o antigo quarto de Hugo.
Pedro já havia retirado quase todas as coisas dele, mas a cama — aquela cama que guardava tantas memórias — ainda estava lá, com os mesmos lençóis.
E, com eles, o cheiro dele.
Amanda fechou os olhos. Era como se ele estivesse ali, sussurrando para ela na penumbra.
"Esse quarto ainda tem o cheiro dele... Parece que estou ouvindo sua voz... Aquela voz que me tranquilizava... e aquela outra... que me fazia queimar por dentro.
Aquele sorriso no canto da boca que me fazia feliz...
Aquele olhar triste, mas acolhedor, que me salvava sem dizer uma palavra..."
Sentou-se na beira da cama, e, de repente, o vazio dentro dela pareceu maior que o próprio quarto.
E ela chorou.
Chorou baixinho, como quem não quer acordar a casa.
Chorou pelo amor perdido, pelas perguntas sem resposta, pela ferida que parecia tão recente e tão antiga.
"Não tenho mais nada disso... Ele nem me ligou... Nem quis saber como estou... Era tudo mentira?
Por que isso aconteceu de novo comigo?
Mas desta vez... esta dor é diferente.
Não é como foi com o Walter, que me traiu.
Com o Hugo... é como se o chão tivesse sumido.
Como se o ar tivesse ido embora.
Só se passaram dois dias... mas parecem dois anos."
Amanda chorou até o peito doer, até a alma soluçar.
E, no fim, foi o cheiro nos lençóis — o último abraço que ainda restava — que a embalou num sono triste e silencioso.
Mansão Brandão – Windenburg
A noite caiu pesada sobre a cidade, mas dentro da Mansão Brandão, o clima era ainda mais denso.
Após reencontrar os filhos, Otacílio passou mal no estacionamento. Jonas, preocupado, insistiu para levá-lo ao hospital, mas Vivian, sempre calculista, vetou a ideia. No carro, entre sombras e faróis cortando a estrada vazia, ela enfiou os remédios goela abaixo do noivo, e ele, aos poucos, serenou.
Durante o trajeto de volta, Otacílio falou. Pela primeira vez em anos, ele abriu as comportas do passado, falando dos filhos, da mulher que deixara para trás, dos erros que carcomiam sua alma. Vivian, fria como o inverno de Windenburg, apenas ouvia, sem interromper. Atrás daquele olhar atento, a mente fervilhava, buscando uma maneira de transformar o novo obstáculo em degraus para sua vitória.
Chegando à mansão, ela chamou o médico particular. O velho empresário foi examinado, medicado e colocado para dormir em sono pesado. Um sono do qual, se dependesse dela, jamais acordaria da mesma maneira.
Assim que o médico se foi, Vivian não perdeu tempo. Ligou para Murilo, convocando-o com a urgência de quem trama golpes de Estado.
Murilo chegou apressado, olhos arregalados, já sentindo que o que ouviria mudaria tudo.
Vivian, com a frieza de quem já decidira o destino de todos, contou cada detalhe.
— Mas, Vivian, essa notícia muda tudo! Não podemos continuar! — Murilo protestou, suando frio.
Vivian virou-se lentamente, os olhos faiscando sob a luz dourada da área.
— Nós não só podemos como vamos continuar. Só que agora... de outro jeito.
— Vai dividir a herança com os filhos? — perguntou ele, incrédulo. — E se resolverem investigar a morte dele?
Ela soltou uma risada seca, como uma lâmina sendo afiada.
— Eu não vou dividir nenhum centavo com aqueles mortos de fome. O dinheiro desse velho desgraçado é só meu!
— Só seu? — Murilo arqueou a sobrancelha, assustado.
Vivian piscou lentamente, antes de corrigir:
— Nosso. Você sabe o que eu quis dizer.
Murilo balançou a cabeça, dividido entre o desejo e o medo.
— Mas eles são filhos legítimos, Vivian! Se quiserem, têm mais direito do que você.
O olhar dela se estreitou como o de uma serpente pronta para o bote.
— Você tá do lado deles ou do meu? — sibilou.
— Do seu! Mas... temos que ser realistas. Agora é arriscado. Antes era mais seguro. Sem filhos, ninguém contestaria. Agora... podemos ser presos!
— Cala a boca! — Vivian gritou tão alto que ecoou pelos arredores.
Murilo encolheu os ombros, temendo pela própria vida.
— Você não faz ideia de quem eu sou, Murilo. — A voz dela agora era baixa, gélida. — Quando eu quero algo, nada me impede. Nem lei. Nem sangue. Nem morte.
Murilo engoliu em seco.
— Então, qual o plano?
Vivian deu um sorriso lento, venenoso como absinto.
— Otacílio vai fazer um novo testamento. Deixando tudo pra mim. Escrito de próprio punho. Vamos "ajudar" ele nisso.
— Ajudar? Como?
— Conheço uma especialista em falsificação. Uma artista. Amanhã, cuido disso. Você só precisa manter o velho distraído e fazer seu papel de fiel escudeiro.
— E se os filhos forem atrás da justiça?
Vivian deu de ombros com indiferença cruel.
— Eles podem até tentar... Mas vão perder tempo. O abandono deles por parte do próprio pai será nosso maior aliado.
Ela caminhou olhando a noite estrelada como quem contempla o tabuleiro de xadrez que montou.
— Eles não têm amor. Só mágoa. E quem carrega mágoa... não luta por justiça. Luta pra esquecer.
E ali, na escuridão cúmplice da noite, Vivian selou o destino de todos, sem uma única sombra de arrependimento no coração.
Murilo desviou o olhar, a mente rodando em espirais perigosas.
"Se eu for preso... quem vai cuidar das minhas filhas? Eu sustento a casa. Se algo der errado, elas pagarão o preço dos meus erros. Mas... se der certo... se der certo, posso dar a elas uma vida confortável. Mesmo que a Regina me odeie, mesmo que venha o divórcio... elas terão o que merecem."
O turbilhão de pensamentos foi interrompido pela voz cortante de Vivian.
— Quero transar.
Murilo piscou, desnorteado.
— O quê?
— Quero fazer sexo com você. Agora.
Ele olhou ao redor, nervoso como um garoto em apuros.
— Aqui?
— Sim. Aqui e agora. — Ela cruzou os braços, impaciente. — Você passou dias me implorando por isso. O que foi agora, perdeu o interesse?
Murilo, tomado pelo receio, fitou a porta entreaberta do quarto onde Otacílio repousava.
— Vivian, estamos em frente ao quarto dele!
Ela deu um sorriso sarcástico.
— Já fizemos pior. Transamos com ele dormindo na cama, lembra?
— Mas naquela vez ele estava dopado!
— E agora também está. Dei o dobro de calmantes no suco que ele pediu.
Murilo empalideceu.
— Ele já tinha tomado os remédios que o Dr. Robson receitou... — sussurrou, como se temesse que o próprio sono de Otacílio ouvisse. — Ele pode sofrer uma overdose! Quer que ele morra antes do casamento?
Vivian revirou os olhos, impaciente como quem lida com um funcionário incompetente.
— O velho está bem. Se quiser, vai lá conferir.
Murilo hesitou, o suor brotando na testa.
Vivian, irritada pela hesitação, jogou-lhe a pergunta como uma faca:
— Você quer ou não quer transar comigo?
Murilo engoliu em seco. Desejava... mas o medo o paralisava.
— Quero... mas não sei se consigo entrar no clima agora.
Vivian soltou uma risada baixa, escura como vinho derramado.
— Ah, Murilo... — sussurrou, com voz aveludada e venenosa. — Eu sei muito bem como te deixar no clima.
Sem tirar os olhos dele, deslizou lentamente a mão pela própria coxa, subindo, provocando, tocando-se sem pudor. Em um gesto hábil e lascivo, livrou-se da peça íntima e sentou-se no sofá de veludo, abrindo as pernas para ele como uma deusa pagã convocando o sacrifício.
Foi o bastante.
O desejo venceu o medo. Num impulso febril, Murilo se lançou.
E ali, entre sombras e luxúria, consumaram um prazer urgente e sujo, enquanto a mansão inteira parecia prender a respiração.
Vivian entregou-se ao ato, mas algo dentro dela se surpreendeu.
"Eu não acredito... É a primeira vez que gozo com esse idiota... sem precisar fechar os olhos e imaginar que ele é o Hugo..." — pensou, meio chocada. — "Devo estar mesmo carente..."
Mas, no final das contas, que diferença fazia?
Vivian Gutierre nunca se guiou pelo coração.
Guiava-se pela fome.
Pelo poder.
Pela conquista.
E no jogo que ela jogava, prazer e ambição sempre andaram de mãos dadas, como velhos cúmplices conspirando à luz da lua.
Amanda dormiu bem a noite toda, apesar das preocupações e tristezas que pesavam sobre ela.
Nos últimos dias, havia trazido quase todas as mercadorias da floricultura para casa. Algumas plantas agora enfeitavam o quintal, enquanto as mais delicadas estavam protegidas dentro da antiga garagem.
Para surpresa de Pedro e Sarah, Amanda aceitou a decisão sem resistência. Eles esperavam que ela se recusasse a vender a loja, mas, em vez disso, apenas abaixou a cabeça e concordou. No entanto, era visível que isso a entristecia profundamente.
"Eu queria tanto que aquela loja desse certo... Mas, infelizmente, ela morreu junto com a minha mãe. Não sei o que fazer agora. Tô com vontade de me mudar daqui, começar uma vida nova em outro lugar. Quem sabe assim essa tristeza vai embora... Preciso ir embora daqui!"
Na tentativa de ocupar a mente, entrou na garagem para cuidar das plantas. Mas, assim que fechou a porta atrás de si, algo a fez parar.
Um cheiro familiar.
O coração dela acelerou.
"O cheiro do perfume dele?... Acho que tô ficando louca. Nem tem tanto tempo assim. Meu Deus, por que gosto tanto do Hugo? Será que vou enlouquecer de vez?"
Ela fechou os olhos, respirando fundo, e as lembranças vieram como um turbilhão, sem aviso.
Eu sei por que gosto tanto dele... Ah, eu sei sim!
Amanda reviveu cada momento ao lado de Hugo. As tardes em que ele a fazia rir com o seu jeito reservado e, ao mesmo tempo, tão encantador. Os olhares cheios de carinho, cheios de promessas. Os beijos inesperados e intensos, onde o tempo parecia parar. O respeito com que ele a tratava, como se cada palavra sua fosse um tesouro. A forma como ele a ouvia, atentamente, mesmo sem dizer muito. O jeito protetor, o toque acolhedor que a fazia sentir-se segura, amada, protegida.
"Eu te amo, Hugo..."
O pensamento veio como um sussurro no fundo da sua mente, sem controle, sem barreiras.
"Quando você vai voltar? Será que vai voltar mesmo? Será que tudo foi um sonho... e agora é o pesadelo?"
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